sábado, dezembro 27, 2008

UM POUCO DAS CONFISSÕES

Este 2008 que acaba de ir embora já foi tarde, para mim. Só me deu problemas e bateu forte em minha saúde. Não exagero: poucos anos em minha vida foram marcados de tantas tribulações, a partir de uma cirurgia no coração que me tornou safenado.

Eu devia ter me acostumado porque, já aos 19 anos, perdi um emprego no Banco do Brasil por causa de um bacilo de Koch. Foi meu primeiro encontro sério com a morte, certo de que, recluso, condenado ao repouso, tudo quanto me restava era a saudade imaginária da vida que não vivera. Mas aqui estou, e a ninguém interessa saber como tem sido o resto.


Pensei ficar pelo caminho. Não estou apenas vivo – sobrevivo. Mesmo assim, trabalho, e nunca interrompi, uma vez sequer, meus compromissos profissionais. Não feri ninguém com a minha pena, e aplaudi aqueles que mereceram louvor pelo critério de meu gosto pessoal. Ao refletir sobre os percalços do ano-velho, vejo agora neles a aprovação que nos faz amar a vida com outra intensidade.


Os calhaus do caminho ficaram para trás. Nossa vida nada mais é do que a transformação do dia de hoje em dia de ontem, enquanto esperamos o dia de amanhã. A memória, que tudo recolhe, faz a triagem necessária. O que é bom lembrar também se chama saudade. Entretanto, o que vale mesmo, nas atribulações com que a vida nos sacode nos seus abalos císmicos, é a revelação, ou a confirmação das amizades puras, com as quais se enfeitam as aventuras da própria vida.


E essa revelação, ou confirmação, não me faltou. No aconchego e no carinho de toda a família. No desvelo com que fui tratado.


A começar por minha incomparável companheira, mãe de minhas duas filhas, a mesma namoradinha única que entrou em meu coração aos 15 anos de idade como uma bênção de Deus.


Vai, ano-velho, e até nunca.

PERISCÓPIO

***** Tive um amigo, nos tempos da Fundação Getúlio Vargas, no Rio, conhecido como “Tragedinha”. Na verdade, andava sempre inclinado ao gemido, se submeteu a muitas operações, chegando a nos dar a impressão de que o fez de propósito, para se comprazer em narrá-la com as minúcias de um tratado de clínica médica. Morreu num desastre de estrada.

***** A morte do professor Abreu Matos, uma amizade de quase indeléveis 28 anos, causou-me profunda tristeza. Professor emérito da UFC, o cientista das “farmácias vivas”, foi embora, dobrou a esquina e não mais será visto. Teve dois amores – a família e as plantas, todas as plantas. E eu tenho vergonha de estar num mundo em que estão destruindo tudo, mesmo as rosas vermelhas. Até um dia, velho amigo.

***** Sempre que, numa roda, alguém levanta a voz, para impor seus pontos de vista, deixo as palavras baterem no muro do silêncio em que me fecho. Sou do diálogo, não da discussão. Não sendo surdo, dispenso gritos. E jamais grito, sobretudo quando sei que o interlocutor é surdo.

***** É do amanhecer que vem meu bom humor. A natureza, ao apontar do dia, sempre me dá, como hoje, a sua mais bela lição: faz a mesma coisa sem se repetir.

***** Ninguém escreveu mais e melhor sobre Machado de Assis do que o genial cearense Raimundo Magalhães Júnior, da ABL. São quatro grossos volumes, a começar de Machado de Assis Desconhecido. Tenho-os. Não vendo. E muito menos empresto.

***** Há presidentes da República que só fazem política, não fazem história, e por isso não perduram. Apagam-se. JK fez história, e há de ser lembrado por mais de mil anos. Lula faz política...

sábado, dezembro 20, 2008

QUEM TEM MEDO DE JORNALISTA?

Eu já vi jornal morrer, eu já vi jornal nascer. Entre os dois fatos, bem distanciados, a promessa de não falar neste assunto, pelo menos por enquanto. Penso no desperdício de energia e talento, postos a serviço da normalização democrática. Passei décadas a escrever, escrever, escrever. A escrever sobre e contra a antilei, o arbítrio, a tortura, o AI-5, o resto. Podia cuidar de outras coisas, dos passarinhos, do papagaio, dos livros, amados livros. Quem sabe, ler também o poema de Horácio. Nunca li direito a Divina Comédia, mas conheço na ponta da língua o maldito quarentão AI-5.

A vasa inesgotável dos remendos fabricados sob medida, na alfaiataria do casuísmo, do mais reles imediatismo. E pergunto: onde estão os faróis altos? O Brasil não é apenas a popularidade formidável de Lula, pontes, viadutos e elevados, e hidrelétricas, e soja, e eletrodomésticos, o Pac, o pré-sal etc. e etc. O Brasil deve livrar-se de sua pobreza. Deve ser justo. E pode ser pobre e decente, sem o escândalo afrontoso dos anos-luz que nos separam da multidão infinita dos deserdados.

Já mudei de jornal algumas vezes, principalmente na fase do Rio de Janeiro. O jornalismo é (ou era) instável. Os jornais também morrem. E há o incontrolável desejo de desabafar. Cuspir a espinha atravessada na garganta. Para quê? Para nada. Tenho perfeita consciência de que não vale rigorosamente nada. Escrevemos, escrevemos, clamamos no deserto.

O clube do poder tem as portas lacradas e calafetadas. Um ou outro conceito afaga a nossa vaidade. Influência? Nenhuma. Senhores: não tenhais medo de nós, escribas. Somos os trouxas de um plantão cívico, consciências atormentadas, ardentes de brasilidade, de querer o melhor para o Brasil. Hierofantes de hieróglifos indecifráveis, inocentes néscios que acreditam em Papai Noel e nas santas intenções dos que vendem um carro em 60 prestações, sem entrada e sem mais nada.

Depois... bem, o Brasil é vosso. Fazei dele o que melhor vos aprouver. Consola-nos a certeza de que morreremos indignados e passamos adiante este legado de ira e ternura. Cidadãos da República em uma lição de polidez e de firmeza para um mundo despovoado.


PERISCÓPIO

***** A política, por vezes, tem esta chatice: obriga-nos a obsessiva postura cívica, ainda aos que dela apenas querem distância e normalidade. Confesso, por isso mesmo, e a ver o que ocorre por aí, que sofro de algum cansaço e tédio de ser brasileiro, obrigado a acompanhar passo a passo, dia a dia, todos os nossos calços e tropeções.

***** Quem foi à festa grã-fina me contou. Lá pras tantas, uns dois ou três rapazes franceses, a mil do melhor uísque, pediu ao conjunto musical que executasse a Marselhesa. Os rapazes subiram às cadeiras e contagiaram a platéia, que ficou de pé. Parecia aquela cena de Casablanca, sem tiro, sem vítimas e sem Humphrey Bogart.

***** Uma amiga querida me manda, de presente, o impressionante livro de Larry Rohter Deu no New York Times. Riquíssimo em informações e escrito de modo macio e atraente, com sua leitura estou varando as madrugadas.

***** O que Ciro Gomes quer mesmo é ser presidente da República. Como qualquer brasileiro, tem o direito de aspirar ao que, mais que uma honra, é o dever cívico de exprimir a sua Pátria. E quem não a exprime não a dirige.

***** “Se servires à Pátria, que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, ela, o que costuma.” Assinado: padre Antônio Vieira. O mestre sabia o que dizia, e infelizmente continua atual.

***** Não sei se é possível escrever uma história do Brasil que faça do povo o seu principal protagonista. Com uma pitada de bizantinice, seria o caso de perguntar primeiro o que é o povo, ou de definir essa vaga e onipresente personagem.

sábado, dezembro 13, 2008

VOLTO A CARLOS LACERDA


Um leitor, inteligente e versátil, me faz voltar a Carlos Lacerda (1914-1977), sempre essa figura incomum. Vamos lá. Quem lê Lacerda e quem o ouvia, admirando o jornalista e o tribuno (tenho uma obra em vários CDs, editada pelo Senado, Grandes Momentos do Parlamento Brasileiro, e lá está ele ao lado de outros gigantes discursando com o brilho de sempre), fica em dúvida se ele era jornalista porque era tribuno ou se era tribuno porque era jornalista.


Em ambos ocorre a mesma torrente de eloqüência. Sente-se que o jornalista, quando sentava à máquina para escrever o seu artigo, derramava-se por toda a página do jornal, assim como o orador, quando subia à tribuna, esquecia-se do tempo, levado pelo fluxo da palavra irreprimível.


Em um dos discursos, encontramos este trecho veemente em que define o homem livre: “É o homem participante, o homem com suas paixões, suas cicatrizes, suas longas agonias, seus minutos disputados à eternidade. Aquele que se poupa, e o que se exclui, é marginal, não é livre. Livre é o que decide, o que opta, o homem que se engaja, o que se decide e não se recusa a manifestar a sua decisão.”


Quem bem conhece Lacerda, vê logo que, nestas palavras, ele faz o seu auto-retrato. Era ele o homem livre de sua definição. Participante. Engajado. Pronto a uma decisão. Não nasceu para pescador à linha, sentado à beira do rio, com seu caniço paciente. Era o pescador do mar aberto, que lançava às águas revoltas a sua rede. Lacerda só era subornável pelo jantar que ele mesmo pagava. Era assim, na inteireza bravia do seu temperamento. Capaz de grandes iras e de grandes gestos. Não nasceu para o meio-termo, para a contemporização.


No Brasil de hoje, dá para encontrar algum político ao menos um pouco parecido?

PERISCÓPIO

***** A verdade é esta: quando morremos, não somos nós que acabamos para o mundo, é o mundo que acaba para nós. Assim pensam os humildes e os sensatos.

Os insensatos e os vaidosos pensam o contrário: - são eles que acabam para o mundo.


****** Tasso não tem o menor interesse em voltar a ser governador do Estado (seria a quarta vez). Digamos se tivesse, apareceria algum interessado em enfrentá-lo?


***** Afinal, o que é a glória? Encontrei em Flaubert uma resposta definitiva: nada mais seria do que a oportunidade para que se digam muitas tolices a nosso respeito.


***** O Natal é o reencontro da infância. Para senti-lo em plenitude, faz-se indispensável que ressurja a menina ou o menino que coexiste conosco, à revelia do passar do tempo. Como diz Nélson Rodrigues, dentro de nós há uma criança encravada como rato ou sapo de macumba.


***** Nasci e cresci às margens do Parnaíba, em Teresina, a Cidade Verde, assim chamada por Coelho Neto. O poeta piauiense Da Costa e Silva, filho de Amarante, lhe dedicou uma lindíssima poesia.


***** Só o terceto final lhe dá categoria de obra-prima nos florilégios da literatura brasileira: --
“Saudade! O Parnaíba – velho monge // As barbas brancas alongando... E, ao longe, // O mugido dos bois da minha terra...”

sábado, dezembro 06, 2008

Minhas Paixões Literárias


São poucas. Quatro ou cinco. Abro um volume de Humberto de Campos (1886-1034) e lembro que meu pai trazia a revista O Cruzeiro – que circulou de 1928 a 1975 – e eu lia logo a última página, confiada a Rachel de Queiroz, e o Diário Secreto de Humberto, publicado em capítulos semanais.

Membro da Academia Brasileira de Letras aos 34 anos e deputado federal pelo Maranhão, nascido em Miritiba (hoje com o nome dele), perto do litoral maranhense, caladão, introvertido, feio, sem fumar, sem beber, não sei de nenhum outro escritor mais versátil e com tanta popularidade, nos últimos anos de sua vida torturada, ainda que sem nenhum livro traduzido para outra língua. Algumas das suas obras, porém, até provocaram na época uma enorme polêmica, psicografadas pelo médium Chico Xavier, então quase desconhecido.

Humberto, doente (irregularidade na hipófise e graves problemas urológicos), era o pássaro cego que faz da cegueira um motivo a mais para a beleza e a harmonia de seu canto. Morreu na mesa de cirurgia. O coração parou diante dos cinco médicos que tentaram salvá-lo. Um deles chegou a perguntar: “Estás com medo, nobre escritor?”. E Humberto, com humor-agonia, respondeu: “Claro, são cinco contra um...”.

Cresci lendo esse admirável operário de letras e com ele aprendi, em parte, o gosto da escrita límpida que alicia o leitor. Acho que seu Diário vale mais que as Memórias, que tantas emoções suscitaram. E ali estão, entre os 40 volumes que escreveu abrangendo poesias, contos, crônicas, memórias, crítica literária e artigos para jornais e revistas, algumas das páginas mais representativas do excepcional talento literário do escritor.

Em 12 de fevereiro de 1932, era assim que ele gemia, com a ponta da pena: “Eu me sinto sem saúde, sem dinheiro e sem uma afeição, a caminho da cegueira, tão profundamente desgraçado, que chego a encontrar uma espécie de volúpia na minha própria desgraça.”

Era o pássaro cego que já cantava ao cair da tarde.

E MAIS:

***** Enquanto Salvador Dali reconhecia que os seres que nos rodeiam estão muito mal pintados, Picasso apresentava a prova, transpondo-os para seus quadros mais famosos.

***** Li num desses contos infantis que os candidatos a empregos públicos, no país dos pigmeus, tinham de equilibrar-se numa corda, dando saltos. Ganhava o cargo quem pulasse mais alto, sem cair. E se adotássemos esse processo no Brasil?

***** Não demora muito, e não teremos mais crime contra a honra, os bons costumes, contra o próximo. Pela boca de um personagem, Dostoievski reconhece que, se Deus não existe, tudo é permitido.

***** Ao me ver amparado numa bengala e claudicando, por causa de uma queda do cavalo, o velho amigo me consola: “Vá por mim. Em matéria de doença, antes o varejo que o atacado.”

***** Uma leitora quer saber em que parte de “Dom Casmurro” aparece a forma completa do nome de Capitu. O nome é Capitulina e aparece, uma única vez, no capítulo XIV, quando a menina, já de namoro com o narrador, escreve o nome dele (Bento) e o dela, com um prego, no muro do quintal.

***** Se você tivesse de escolher entre um político criado por macacos ou um macaco criado por políticos para companheiro de dormitório, qual a opção? De mim, pediria um quarto separado.