sábado, fevereiro 28, 2009

CRENÇA, FÉ, VELHOS DEMÔNIOS ETC.


Devo logo confessar: não sou homem de fé, chegado a milagres, procissões, peregrinações, romarias, essas coisas. Não sou ateu, nem sei bem o que é ser ateu, talvez pergunte ao Fernando Henrique. Não sei se posso dizer – sou agnóstico, até porque acho o adjetivo pernóstico (a rima é proposital).


Acho que, no caso, e em quase todos, sou mesmo é ignorante. Não tenho razões para crer em Deus, mas não tenho razões para não crer em Deus. Complicado, não? Penso o seguinte: é-nos cada vez mais difícil crer no que quer que seja: sistemas econômicos, organizações sociais, credos políticos, valores, tudo parece desmoronar a olhos vistos nos tempos atuais. Mas nada, nesta idade da dúvida, é mais difícil de acreditar do que num Deus bom, invisível e todo-poderoso.


Li, por exemplo, que desde 1858, milhares de curas clinicamente inexplicáveis foram observadas em Lurdes; 65 foram oficialmente reconhecidas pela Igreja Católica como milagrosas. Mas o ritmo parece ter-se reduzido. Menos de 20 foram reportadas nos últimos 50 anos e nenhuma desde 1976. Por que tanta gente vai a Lurdes? São mais de 10 milhões de pessoas de 150 países todos os anos. Mais da metade delas afirma não ter fé.


Por que então ir a um lugar que, em tese, nada lhes diz? Desconfio que nossa época perdeu o sentido da vida. As pessoas procuram Deus sem saber que é a Deus que procuram. Com todos os problemas do mundo, pode parecer ridículo falar de esperança, mas as pessoas ali encontram esperança, como encontram em Juazeiro do Padre Cícero, em Canindé, em Aparecida, em Belém de Nazaré, o Senhor do Bonfim na Bahia, para citar apenas as mais importantes festas religiosas no Brasil.


Todos são atraídos por curas milagrosas. As pessoas encontram um novo sentido de vida, à procura de uma vida melhor. Dia desses, na TV, assisti a um documentário da Igreja Universal, do Bispo Macedo. É uma empresa moderna, estende suas atividades além-fronteiras. Antes de tudo, descobriu um produto extraordinário – vende esperança. Observe-se que não vende objetivamente nada, nenhum resultado, vende esperança. A fita impressiona. Há indícios de deboche e cinismo além do razoável. O sobrenatural costuma exigir pompa e circunstância. A Igreja Universal dispensou-as. Novos tempos, novas técnicas, novos métodos.


Bom, o espaço acabou e não tenho vocação para credulidade em grupo. É perigoso. Não se deve brincar com os velhos demônios. Assim como o divino e as utopias, eles podem estar só adormecidos.

PERISCÓPIO

***** Era uma vez o casamento indissolúvel. Tudo hoje é solúvel, do café aos cálculos renais. E às vezes é até dissoluto. Eu acho engraçado quando o jornal escreve na legenda “fulana de tal e seu atual marido.” O adjetivo cabe, sim. E já convém dizer também atual filho. E atual neto. Nunca se sabe o dia de amanhã.


***** Outro dia, num velório, as pessoas riam, tomavam café, mastigavam salgadinhos. Eu me pergunto: por que rir num velório, diante de um defunto impecavelmente silencioso, quieto, sisudo? E era um rir sem conta. Imaginem só: de um velório! Não me contive e também comecei a rir.


***** Ganhei uns CDs de João Gilberto. Não vejo graça e não consigo suportar esse artista. Tem gente, e muita, impressionadíssima com ele. Não é um joão-ninguém. É alguém. Um gênio, de ouvido absoluto, Um fio de voz, que até os anjos ouvem em silêncio. Menos eu. Impressionam-me, sim, Orlando Silva, Chico, Sílvio, Nélson. Até a Araci de Almeida. Essa turma das nossas saudades. As de hoje, faz gosto ouvir Joana, Simone, Maria Rita, Preta Gil, para ficar por aqui. Lindas vozes.


***** Falar em música, se me perguntarem a que mais admiro do repertório de Luiz Gonzaga é a valsa-choro Légua Tirana, que ele fez com letra belíssima de Humberto Teixeira, seu maior parceiro (Gonzagão nunca fez letras, só músicas). Cito, entre tantas belezas, Vozes da Seca, de Zé Dantas, o segundo maior parceiro. Zé Dantas, médico, morreu jovem, vítima de um câncer. Era sobrinho de João Dantas, o jornalista que matou João Pessoa.


***** De tantas memórias, bem que podia agora proclamar a escravidão, como diria o Stanislaw Ponte Preta, no Samba do crioulo doido. Assim se completa essa volta ao passado, um segundo coração que bate dentro de todos nós.


***** Uma das filosofias de pára-choque de que mais acho engraçada é esta: -- Velho não tem amor; velho tem é veneta. E olha que estou no subúrbio da velhice...

domingo, fevereiro 22, 2009

Quem Nos Tira a Imortalidade


Esta é uma vida de maluco. Tempo, que é bom, não nos resta para mais nada por inteiro. Ocupação, quem procura, acha. Eu não sei ficar parado, preciso sempre estar fazendo alguma coisa para o espírito, puxando pelos neurônios, antes que se recolham. A leitura também é fragmentada e a música fica tocando aqui do lado, sem sensibilizar muito por falta de ouvidos atentos. É difícil ler do início ao fim. Passam-se os olhos, lê-se em diagonal para saber do que se trata. Ando lendo muito picado.


Desde que começaram a ser publicados pela Companhia das Letras, tenho sempre algum livro de Nélson Rodrigues na cabeceira (há alguns da Manchete e de outras editoras). Ele faz parte da minha obsessão por determinados autores. Sobre Nélson, não há leitura mais compatível com o tempo restrito e a toda hora interrompido. O tom coloquial e o obsessivo retorno aos temas e às personagens tornam irrelevante onde paramos e onde retomamos a leitura.


Basta abrir uma página ao acaso para logo estarmos imersos no universo rodriguiano, o Brasil e o mundo dos anos 60 e 70 vivamente reconstituídos. Mas vou deixar Nélson por um momento. No início da semana, a Folha trouxe um artigo do Lima Hugor. Tendo feito várias viagens ao Oriente Médio, Lima observa que, ao retornar, ninguém quis saber do que ele sabia, do que ele viu, do que mais o impressionou. Ninguém quer ouvir falar de sofrimento, horror e humilhação.


Como explicar essa enorme indiferença e a falta de solidariedade com as vítimas de crimes históricos aterradores? Por que essas atrocidades não despertam a indignação e a solidariedade dos intelectuais como despertou a Guerra Civil espanhola dos anos 30? O próprio Hugor responde: não estamos mais nos anos 30 nem nos anos 60; já vivemos o século XXI. Sem a identificação do fascismo e do imperialismo com o Mal, já não há um esquema simples para nortear o pensamento e a ação. Se os intelectuais dos anos 30 e 60 revelaram-se crédulos e ingênuos, os intelectuais de hoje são sombriamente despolitizados e cínicos.


A própria noção de solidariedade internacional sofreu um declínio vertiginoso O mundo cada vez mais interligado sofre de um paroquialismo paradoxal. O capitalismo consumista é de tal forma vitorioso que houve um descrédito da política. Só a vida privada importa. Na era das compras massificadas, os intelectuais, que são tudo menos pobres e marginalizados, têm dificuldade de se identificarem com os menos afortunados. Voltemos a Nélson Rodrigues. Crítico implacável das esquerdas, Nélson usou como ninguém seu extraordinário talento para ridicularizar os modismos da época. Quarenta anos depois, as confissões de Nélson nos parecem pérolas de humor e clarividência.


O paroquialismo de Nélson foi maravilhosamente sintetizado por ele mesmo ao dizer que assim que entrava na Via Dutra batia-lhe uma saudade insuportável do Brasil. Anticomunista e paroquial, Nélson poderia ser identificado com o intelectual moderno de Hugor. Nada mais equivocado. Segundo Nélson, falta a Marx a dimensão da morte. E nada mais distante desse formidável dramaturgo do que o cinismo intelectual do século XXI. Se já não é o comunismo que nos tira a imortalidade da alma, desconfio que, vivo, Nelson hoje se juntaria ao amigo para reclamar do capitalismo consumista.

PERISCÓPIO

***** Já se foi o tempo em que ninguém se metia em briga de marido e mulher – nem o marido. Hoje todo mundo se mete em tudo. Isto começou depois que definiram o direito à intimidade, também conhecido por privacidade, palavra que o Morais e o Aulete não registram. Além de feio, é um neologismo malformado e inútil. Afinal, íntimo é uma coisa; privado, outra.


***** Depois de assistir ao excelente “Um Sonho de Liberdade”, com um magistral Tim Robbins e sem esquecer a perfomance de Morgan Freeman, só me resta dizer: o prisioneiro inocente que pode derrubar as paredes do seu cárcere e não o faz, não passa de um covarde.


***** “Não tendes, porque não pedis”. Essas são as palavras de Tiago aos primitivos cristãos, mas estas mesmas palavras se aplicam a muita gente que, podendo ter muito, têm pouco.


***** Contrariando todos os boatos, tudo leva a crer que Tasso é candidato apenas a se manter no Senado. Para o governo do Estado, lutará pela reeleição de Cid Gomes. Quanto a Ciro, não há sinais de que pretenda deixar a Câmara Federal.


***** De Humberto de Campos, o autor mais lido de sua época: “As tempestades derrubam as árvores fortes e altas por mais enraizadas que estejam: mas a elas resistem as modestas plantas flexíveis e a selva do campo.”


***** Bateram recordes em notinhas de nossos jornais: o ministro Ubiratan Aguiar, presidente do TCU, e o desembargador Ernani Barreira, presidente do Tribunal de Justiça.

sábado, fevereiro 14, 2009

O PIOR DOS MEUS CARNAVAIS


Meus carnavais, na juventude distante, foram em minha saudosa Teresina, a “Cidade Verde”, como Coelho Neto chamava a terceira cidade projetada do Brasil. Lá eu nasci e cresci às margens do Parnaíba, entre “A Lenda do Cabeça de Cuia” e o soneto “A Moenda”, de Da Costa e Silva, um dos maiores poetas do Brasil. O nome de Teresina vem de Teresa Cristina, mulher do Imperador, e era conhecida como a Chapada do Corisco, tal a incidência de raios, das maiores do planeta.


Os bailes, inesquecíveis, eram no imponente Clube dos Diários, animados pela orquestra da Polícia Militar, sob a batuta de Mestre Leocádio, com quem estudei violão. Eram quatro dias seguidos, de manhã e de noite. Os foliões se aglomeravam na Praça Pedro II, com sua fonte d´água luminosa, ao redor da qual os namorados, o ano inteiro, caminhavam em círculos, rapazes pra lá, moças pra cá, flertavam-se, sorriam, na maior felicidade do mundo e acabavam de mãos dadas, o máximo permitido naqueles tempos de resguardos.


O corso, com centenas de carros, desfilava pelas ruas principais da cidade, então com 250 mil habitantes, um paraíso com muitas árvores. Atraía multidões em jogos de confetes e serpentinas, e os mais aplaudidos eram os pequenos caminhões das mulheres “de vida fácil”, com seus vestidos de tafetá, cores berrantes, lindas, atirando beijos. O desfile passava pela porta da casa de meus pais, com muitas janelas, na Rua da Glória, a rua das figueiras, deixando no ar o cheiro dos lança-perfumes (cloreto de etila) vendidos sem proibição, em metal ou vidro, quase sempre vindos da Argentina. Os mais afoitos molhavam o lenço, cheiravam adoidados e saíam pulando feito guaribas.


Só em 1956, fui conhecer o carnaval carioca (eu chegava ao Rio no exato dia da posse de Juscelino Kubitschek no Catete, 31 de janeiro). Ficava, com os amigos, na Cinelândia, no final da tarde, a ver o encanto da criatividade daquele povo irreverente, esperando a hora do desfile das grandes escolas na Presidente Vargas. Blocos independentes surgiam da Senador Dantas e cantavam músicas de grande beleza, entre elas “Confete”, a formosa marcha de David Násser e Jota Júnior, “As Pastorinhas”, de Noel Rosa e João de Barro, o Braguinha, e “Mamãe eu quero”, de Jararaca, da dupla com Ratinho (Vicente Paiva entrou de gaiato na parceria), que desde 1937 e até hoje é a marchinha mais tocada em todos os carnavais.


Um folião solitário passeava calmamente na rua, com uma cartolina no peito, onde se lia “Dr. Sá”, e segurava no braço um pedaço de cana... Mas o pior comigo foi na Cinelândia. Passou um gay, com seus trejeitos, rapaz bonito, corpo de bailarino espanhol, e eu brinquei com ele com algum mau gosto. Ele me olhou de cima a baixo, com um olhar arrasador, e esbravejou: “Te sai, acabado!” E eu, pau-de-arara, magrelo, mal-ajambrado, fiquei sem um lugar onde metesse a cara de lambedor de rapadura. Os amigos me gozaram, e eis que este foi o pior momento de todos os meus pouquíssimos carnavais.

PERISCÓPIO

****** “Não tendes, porque não pedis”. Essas são as palavras de Tiago aos primitivos cristãos, mas estas mesmas palavras se aplicam a muita gente que, podendo ter muito, têm pouco.


****** Contrariando todos os boatos, tudo leva a crer que Tasso é candidato apenas a se manter no Senado. Para o governo do Estado, lutará pela reeleição de Cid Gomes. Quanto a Ciro, não há sinais de que pretenda deixar a Câmara Federal.


****** De Humberto de Campos, o autor mais lido de sua época: “As tempestades derrubam as árvores fortes e altas por mais enraizadas que estejam: mas a elas resistem as modestas plantas flexíveis e a selva do campo.”


****** Bateram recordes em notinhas de nossos jornais: o ministro Ubiratan Aguiar, presidente do TCU, e o desembargador Ernani Barreira, presidente do Tribunal de Justiça.


****** Até agora, inverno fraco, chuvas localizadas. As previsões são animadoras, mas bem abaixo do esperado. Um chuvisco aqui, outro ali, tudo bem. Até porque chuvisco em terreiro de pobre é tempestade.


****** Lula mandou avisar ao governador Sérgio Cabral que vai assistir ao desfile das escolas de samba na Sapucaí. O último presidente a ir lá – 23 de fevereiro de 1994 -- foi Itamar Franco, fotografado ao lado de bela modelo (cearense) Liliam Ramos, ela sem calcinhas. As fotos rodaram o mundo.

sábado, fevereiro 07, 2009

COVA RASA PARA OS POBRES


Frei Mansueto, quase esquina com Pereira Valente, lá estava ele na sua cadeira-de-rodas, braço estendido, muito magro, barba de rabino, cabelo em desalinho e sujo, latinha à mão, implorando trocados. Muitas pessoas, mesmo com medo, baixavam pela metade o vidro do carro e jogavam alguma moeda. Ele dizia o deus-lhe-pague e ali permanecia o dia inteiro de todos os dias. (Eram poucos, não havia ainda os bolsões de miséria dos dias atuais).


Sou do tempo que o pobre passava na porta de casa e batia palmas. Alguém atendia. Com uma lata à mão, pedia comida. Minha mãe não falhava. Não dava resto. Dava o que ainda iríamos almoçar. O pobre agradecia. E louvava os bons corações. Era um rito civilizado. A gente até conhecia o pobre de vista e de fome. Passava entre uma refeição e outra. O pobre vinha uniformizado de pobre. Tinha cara de pobre, cabelo de pobre, barba de pobre, olhar de pobre. Olhos humildes que se voltavam para baixo.


Quando não trazia a própria lata, um desmazelo, a família dispunha de uma vasilha qualquer para a emergência. Se o pobre tinha defeito físico evidente e feio, cuidava de não o exibir. Ninguém lhe indagava o que era. Respeitava-se a intimidade do pobre, mesmo sem estar garantida pela Constituição.Não se perguntava por que o pobre era pobre. Curiosidade tinha limite. E existe, sim, o falso mendigo, daqueles que fazem da mendicância um meio de vida. Mas é injusto identificar todos os indigentes com falsos mendigos. Alguns sofrem de necessidades tão prementes, que são compelidos à humilhação de pedir.


Pois me contaram que o mendigo da Frei Mansueto morreu na sua cadeira-de-rodas. Foi encontrado morto, comportado na sua miséria. Enriqueceu o escrínio de nossas jóias hereditárias, de nossas virtudes, de nossa covardia, de nossa indiferença, da cova rasa que oferecemos aos pobres.

PERISCÓPIO

**** Desgraça mesmo é sapato apertado. No entanto, é o melhor meio para valorizar a delícia de um chinelo caseiro, mostrando que a felicidade, às vezes, não está ao alcance das mãos, mas dos pés.


***** É cada vez maior o fosso entre a política e a ética. A tal ponto que começam a ser lançadas no debate público – e nas consciências – como elementos contraditórios. Ou se é político ou se é ético. Não se pode servir aos dois senhores.


***** As relações entre prefeitos e vices, governadores e vices quase sempre foram ruins. Em muitos exemplos, acabam mal. Mas todo mundo quer ser vice de todo mundo e todo mundo aceita o vice mais conveniente ao interesse eleitoral.


***** O sertanejo de Juazeiro do meu Padim jamais tinha visto o mar. Até que outro dia, em ônibus fretado, veio a Fortaleza, com alguns amigos. Isso parece acontecer todos os anos. O repórter da tevê perguntou: “E então, não é lindo?” O sertanejo abriu o coração sincero: “Muito chique, muito distinto...”


***** No episódio da eleição das mesas diretoras no Congresso Nacional, ficou fácil estabelecer a diferença entre os parlamentares capazes e os parlamentares capazes de tudo.


***** Engraçado é o seguinte: nos regimes capitalistas, o homem explora o homem; nos regimes socialistas, é o contrário que acontece.