sábado, fevereiro 07, 2009

COVA RASA PARA OS POBRES


Frei Mansueto, quase esquina com Pereira Valente, lá estava ele na sua cadeira-de-rodas, braço estendido, muito magro, barba de rabino, cabelo em desalinho e sujo, latinha à mão, implorando trocados. Muitas pessoas, mesmo com medo, baixavam pela metade o vidro do carro e jogavam alguma moeda. Ele dizia o deus-lhe-pague e ali permanecia o dia inteiro de todos os dias. (Eram poucos, não havia ainda os bolsões de miséria dos dias atuais).


Sou do tempo que o pobre passava na porta de casa e batia palmas. Alguém atendia. Com uma lata à mão, pedia comida. Minha mãe não falhava. Não dava resto. Dava o que ainda iríamos almoçar. O pobre agradecia. E louvava os bons corações. Era um rito civilizado. A gente até conhecia o pobre de vista e de fome. Passava entre uma refeição e outra. O pobre vinha uniformizado de pobre. Tinha cara de pobre, cabelo de pobre, barba de pobre, olhar de pobre. Olhos humildes que se voltavam para baixo.


Quando não trazia a própria lata, um desmazelo, a família dispunha de uma vasilha qualquer para a emergência. Se o pobre tinha defeito físico evidente e feio, cuidava de não o exibir. Ninguém lhe indagava o que era. Respeitava-se a intimidade do pobre, mesmo sem estar garantida pela Constituição.Não se perguntava por que o pobre era pobre. Curiosidade tinha limite. E existe, sim, o falso mendigo, daqueles que fazem da mendicância um meio de vida. Mas é injusto identificar todos os indigentes com falsos mendigos. Alguns sofrem de necessidades tão prementes, que são compelidos à humilhação de pedir.


Pois me contaram que o mendigo da Frei Mansueto morreu na sua cadeira-de-rodas. Foi encontrado morto, comportado na sua miséria. Enriqueceu o escrínio de nossas jóias hereditárias, de nossas virtudes, de nossa covardia, de nossa indiferença, da cova rasa que oferecemos aos pobres.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Nada tenho a declarar, nem a dizer, mas tenho o que transcrever.

"O HOMEM DA BENGALA RETORCIDA"

Quase todos aqueles que privaram comigo durante minha juventude, quando Fortaleza era descalça, repleta de recantos poéticos, já se foram – ou então estão fechados em suas casas por serem muito velhos. Há, porém, uma figura que palmilhava a Avenida 7 de Setembro ao tempo dos cafés Java, Iracema, do Comércio e Elegante; que vi equilibrada no estribo de um bonde de burro e, depois, de um bonde elétrico; que continua firme, misteriosamente aparentando a mesma idade como se o tempo não houvesse passado, não lhe fizesse a mínima diferença. Nunca lhe soube o nome ou o que fazia. Nos idos de 1915, ao encontrá-lo, dava-lhe uma pratinha de cem réis – o preço de um café. Com o decorrer do tempo, aumentei a espórtula para duzentos réis e, sucessivamente, de acordo com o custo de vida, ia aumentando a minha contribuição ao cafezinho.
Ao primeiro sinal da sua bengala retorcida, que me batia levemente no ombro, levava logo a mão ao bolso.
Pois essa figura surge, ainda hoje, das brumas do passado e vejo-o passando pela Praça do ferreira com a mesma bengala e o mesmo olhar.
Baixo, moreno-escuro, cabelos curtos caídos para a frente, capengando um pouco, um dos pés embrulhado num pano velho, mantém o antigo costume e, batendo-me com a bengala no ombro, olha-me súplice e me estende a mão, onde deposito não uma, mas muitas moedas, que ele enfia no bolso de um paletó – o mesmo jaquetão contemporâneo do catavento da Praça do Ferreira.
Ao vê-lo, hoje, sinto um arrepio. Ele é como se fosse uma sentinela implacável do passado, testemunha ocular de algum crime que cometi e do qual não tenho menor recordação...
Nunca houve quem me dissesse quem era, de que família provinha ou onde morava. Tenho a desconfiança de que já morreu há muitos anos, mas não se sabe disso e continua palmilhando os mesmos caminhos.
De qualquer forma, vivo ou morto, tem-me seguido há mais de meio século, como se fosse minha própria sombra...
OTACÍLIO DE AZEVEDO
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OTACÍLIO DE AZEVEDO

Otacílio de Azevedo, artista plástico, astrônomo, escritor, poeta, membro da Academia Cearense de Letras, nasceu em Redenção em 11/02/1896 e faleceu em Fortaleza, 3/04/1978). Começou como pintor de tabuletas de cinemas e letreiro de lojas.Sócio fundador do Centro Cultural Cearense de Belas Artes, que, mais tarde, se tornou Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP). Fundou em 1934, o primeiro ateliê de pintura da cidade, juntamente com Clóvis Costa, Pretextato Bezerra e Gérson Faria.
Na pintura, além de retratista, era paisagista. Na produção literária, destacam-se: Dentro do Passado – 1916; Alma Ansiosa – 1918; Musa Risonha – 1920; Sugestão do Luar - 1921; Réstia de Sol – 1942; Redenção – 1944; Desolação 1947; A origem da Lua - 1960; Adágios, Meisinhas e Superstições –1966; Fortaleza Descalça - 1980
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Nenhum jornal lembrou de prestar homenagem ao Otacílio de Azevedo, nos 30 anos de sua morte, ano passado. É TRISTE.

1:59 AM  

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