sábado, março 29, 2008

SONO


A melhor definição de sono está no coleguinha (nos vemos quase todos os dias) Shakes, numa fala de Macbeth: “É a morte diária da vida”. Com direito ao sonho – diga-se logo. E também aos pesadelos – acrescente-se, para não esquecer o castigo.

LEMBRANÇAS

Pedro II, ao ser exilado, trouxe do Brasil um pouco de terra, e com ela lastreou o travesseiro sobre o qual passou a descansar a cabeça, longe do chão natal (ele morreu em Paris). Faço melhor. Minha terra, Teresina, anda comigo, no meu mundo de lembranças. Para onde vou, vai também. Não pesa. Não precisa que eu a carregue. Está em mim, como minha carne, como meu sangue, a mesma “Cidade Verde”, como Coelho Neto a chamou.

sábado, março 22, 2008

O CENTRO DA CIDADE


O centro da cidade, sobretudo naquele quadrilátero que vai da Imperador à Floriano Peixoto, tornou-se um grande problema para as milhares de pessoas que circulam por lá, a pé, de carro, de ônibus ou de carroça. A área cresceu sem planejamento urbano e ficou imprensada entre encontros e desencontros de ruas e avenidas que se arrastam como cobra ferida. Do jeito que está, nenhum arquiteto dá jeito. O empresário Pio Rodrigues já faz de tudo para “repensar” o centro, reurbanizá-lo, inventar qualquer coisa afim. Uma luta que ele tomou para si, desde que presidiu a CDL, quando construiu a nova sede da entidade, na 25 de Março.

Com seus problemas nervosos, suados, onde todos correm perigosamente, o centro de Fortaleza está um horror de ver e de freqüentar. A Praça do Ferreira aglomera pivetes, mendigos, vigaristas, desocupados, bancas de jornais e aposentados que falam de Jesus e de Jarbas Barbalho com a mesma lucidez, sob a luz de um lindo céu azul. A Igreja do Sagrado Coração é cercada de fortes grades, para o fiel rezar sua reza sem o risco de ser assaltado. Os espigões acabaram as poucas árvores que oxigenavam a área. A expectativa ainda é o Pio Rodrigues, com a tenacidade que herdou do pai, o saudoso Clóvis Rolim. Qualquer hora, ele arregaça as mangas e ressuscita o Titanic.

AOS QUE SE FORAM


Uma das coisas que me doem é o grande número de amigos que morreram e que deviam ainda estar aqui entre nós, a ajudar com sua experiência, o talento, a contemporaneidade, o companheirismo, o desejo permanente de alcançar a luz do túnel. Nunca mais terei como revê-los. Todos estão no imperturbável silêncio para sempre que cala a boca dos que se foram para o país indescoberto, para o indevassável país que a todos nos espera, neste exílio universalmente inevitável, ou nessa paz insubornável que a todos nos iguala.

A vida distribui-se com clamorosas injustiças. É como a renda. Mas a morte tem o agudo perfil da justiça para todos. Eis, porém, que encobre desígnios indecifráveis, segundo um calendário que escapa à nossa razão e sobretudo às razões do nosso coração. Como agüentar a ausência de tanta gente boa que foi embora? Desfrutando de uma memória que ainda não foi atropelada pelos grotescos esbarrões da esclerose, posso reconstituir vários dos amigos que foram e não voltam nunca mais (alguns já foram tarde).

À parte deformações sempre bem-vindas que se produzam nos porões de nossa emoção, a memória afetiva jamais se engana. Pois é à memória afetiva que me fala a presença dessa palmeira de gentis-homens que para mim ultrapassaram os limites protocolares do cartão de visita ou da impostura do curriculum vitae. Quanto aos amigos graças a Deus ainda vivos, não tive dificuldades para encontrar muitos deles que têm a extensão e a profundidade, a abertura e a inquietação que caracterizam a nossa atividade de escribas, a única que não tem chefe.

domingo, março 16, 2008

PSDB E PT JUNTOS ?

Beira à imbecilidade imaginar que Tasso Jereissati, com toda a sua maestria política. experiência e ojerizas, vá se deixar levar pela burra (e absolutamente improvável) possibilidade de uma coligação PSDB-PT, visando à eleição para a prefeitura de Fortaleza. Esse ato político seria tão fictício quanto se deixar cair das nuvens, como na ironia machadiana, para cair do 3º andar.

Também não dá para crer que um partido, com maioria na Assembléia e nos municípios, não tenha nomes para concorrer com Luiziane Lins ou com outro candidato qualquer. Que adianta o boi e a cana, sem o engenho para extrair o produto?

Agora, PSDB e PT, juntos, numa eleição mais ou menos atípica como a de Fortaleza, é de fato impensável. É como recorrer a um doutor em corrupção para salvar uma vida honesta. Pode até salvar. Só que a corrupção do PT, fartamente demonstrada desde a posse de Lula, é contagiosa, incurável e impune.

Por isso, resguardando-se, Tasso quer o máximo de distância do PT, uma distância que desse várias voltas ao redor do globo terrestre. Que o PSDB concorra à eleição, isto sim, todos querem ver. Em seus quadros há nomes respeitáveis, conhecidos, competentes. É só apontar na codorna e matar a codorna, sem riscos de errar e matar o cachorro.

sábado, março 08, 2008

ANAGRAMAS


Conhecem o adjetivo palíndromo? Certamente. É uma das curiosidades do nosso idioma. É a palavra, número ou frases que se podem ler indiferentemente da esquerda para a direita e vice-versa, sempre com o mesmo sentido: -- osso, 63736, orava o avaro. Etc. Vamos ver o menino que brinca de desarticular as palavras.

No fundo, um escritor é um sujeito que pela vida afora continua a mexer com as palavras. Pára diante delas, estranha esta, questiona aquela. O menino virava a palavra pelo avesso e se encantava. Saber que a leitura pode ser feita de trás pra diante é uma aventura. E às vezes dá certo. No conto “Satarsa”, de Julio Cortazar, a palavra é “roma”. Lida ao contrário, também faz sentido. Deixa de ser “roma” e vira “amor”.


Para o leitor adulto e apressado, isso pode ser uma bobagem. Para o menino é uma descoberta fascinante. Olhos curiosos, o menino vê a partir daí que o mundo pode ser arrumado de várias meninas. Não só o mundo das palavras. É a partir dessa possibilidade de mudar que o mundo se renova. E melhora. Ou piora. Não teria graça se apenas melhorasse. O risco de piorar é fundamental na aventura humana.


Mas voltemos ao menino de “Catarsa”. No embalo das palavras, vou me deixando arrastar de brincadeira, que nem o menino do conto. Um dia ele encontrou esta frase: “Dábale arroz la zorra el abad”. Em português, significa: “O vigário dava arroz à raposa”. Soa estranho isso, não soa? Mesmo para um menino aberto ao que der e vier, a frase é bastante surrealista. Um vigário e uma raposa. Na fábula e na vida real, a raposa é espertíssima. Será que come arroz? Não importa.


O que importa é que a oração em espanhol pode ser lida de trás pra diante. E fica igualzinha: “Dábale arroz la zorra el abad”. Pois este palíndromo não só encantou o menino, como hoje encanta qualquer escritor que se preze. Fica visto que as palavras podem se relacionar de maneira diferente. E mágica. Falar ao revés. Tudo isso para chegar ao que eu queria: ando tentando uma série de anagramas com o Brasil de hoje. Quem sabe, virando pelo avesso, a gente acha sentido no governo de Lula?

BARÃO E DUQUE


Em qualquer tratado de moral, os humoristas estão na primeira fila dos deveres. Deles, tenho um monte de livros. Millôr, Max Nunes, Stanislaw Ponte Preta, Fernando Veríssimo, Chico Anísio, Barão de Itararé e outros. No tempo de Getúlio Vargas, o Barão – Aparício Torelly (1895-1971), gaúcho de São Leopoldo – sofreu o diabo. Divertiu o país por mais de 50 anos com sua graça ferina. Intitulou-se duque. De duque rebaixou-se, “como prova de modéstia”, a Barão de Itararé, a batalha que não houve.

Foi vereador no Rio de Janeiro pelo Partido Comunista, que logo depois teve o registro cassado pelo TSE. Em conseqüência, perderam o mandato todos os seus representantes, inclusive 14 deputados federais (entre eles, Jorge Amado e Carlos Marighela) e um senador, o grande brasileiro, Carlos Prestes. Na velhice, cabelos brancos, longos, caídos nos ombros, o Barão enveredou pela ciência, inoculando cobaias ou olhando por um microscópio, tentando descobrir a cura da febre aftosa.

Todos se inclinavam a ver naquilo uma nova pilhéria do Barão. Em dezembro de 1971, numa tarde de chuva miúda, ele foi sepultado no João Batista. Recordo o episódio para dizer: a morte de um grande humorista desperta na gente uma reação contraditória: ao sentimento de consternação, alia-se um sorriso inevitável, que nos sobe ao rosto com a memória de suas pilhérias mais felizes.

Quando um dia lhe perguntaram por que deixara crescer a barba, o Barão explicou: “Se eu não deixasse, filho, ela cresceria sozinha...”