sábado, junho 14, 2008

MACHADO, LIÇÃO CRUEL


Eu avisei. Neste ano do centenário do nosso escritor maior, muitas vezes vou falar nele. Se tiver tempo e espaço, mais de muitas vezes. Da pena de Machado conheço, por exemplo, uma das mais pungentes lições da condição humana, que é certamente a do apólogo do almocreve.

Brás Cubas, o das “Memórias Póstumas...”, é atirado da sela de um jumento, sem tempo de livrar do estribo o pé esquerdo, correndo assim o risco de ser arrastado, despenhadeiro abaixo, quando um almocreve, que estava perto, saltou, agarrou a rédea, contendo o animal. Como recompensa, Brás Cubas pensou em dar ao homem três moedas de ouro, das cinco que levava. De costas, ia tirar as moedas de um colete velho, quando refletiu que devia dar menos, já que o almocreve estava ali por um favor da Previdência. Acabou por lhe dar um cruzado de prata. E logo reconheceu que podia ter dado uma moeda de cobre, visto que o homem, com a moeda de prata, parecia contente demais.

Afrânio Peixoto, inspirado nesse apólogo, deu-lhe uma dimensão nova, num dos seus romances. Ele encontra um mendigo e ficou com pena de haver no mundo alguém infeliz. Procurou um níquel no bolso, tinha apenas uma moeda de prata, grosseira e pesada. Sem se deter, deixou-a cair na mão estendida e foi embora. Alguns passos adiante, ouviu um tinido metálico na pedra e, curioso, resolveu olhar: era o mendigo, desconfiado da generosidade, que ensaiava a moeda na calçada...

Ainda assim, a lição mais cruel é a de Machado.